Passei boa parte da infância e da adolescência numa igreja metodista, na periferia do interior do Rio de Janeiro. Na escola, eu vivenciava, todos os dias, humilhações de cunho racista por parte de colegas. Meu cabelo era alvo de piadas, meu jeito era motivo de chacota, mas, na igreja, era diferente.
Eu e minhas amigas éramos jovens dedicadas à igreja: ação social, evangelismo, estudos bíblicos, serviço, limpeza, aula para crianças, música, teatro, dança. Mas uma coisa não fazíamos: não falávamos sobre racismo, nem sobre o porquê de haver tanta negação da nossa aparência e negritude.
Na jornada de florescimento e aceitação de minha negritude, aproximei-me mais de Jesus. Minha identidade foi forjada por meio de um relacionamento real com Deus, e a percepção da negritude, criada por perspectivas racistas, foi plenamente redimida. As marcas ainda estão em mim, mas elas não doem mais; inspiram-me a cooperar para que as histórias de meninas negras sejam diferentes. A partir disso, tive mais certeza da minha vocação, ligada à participação política. Eu levanto a voz e, em Deus, sigo trilhando passos para o serviço ao próximo na garantia de direitos.
É muito importante que as igrejas, como espaços de comunhão e de relacionamento, falem do racismo de forma adequada e, assim, cooperem para o desenvolvimento de cristãos afetados por ele. Racismo é pecado, produto da queda – e nós o enfrentamos falando sobre isso –, e também crime. A criminalização do racismo e da injúria racial são conquistas muito importantes e devem ser seguidas por mudança de mentalidade.
Em 2019, eu me questionava sobre pontes e caminhos para qualificar a discussão sobre o racismo no meio evangélico. Então criei um grupo com mulheres negras para falar sobre o assunto e sobre os estereótipos presentes nas páginas on-line e em livros tradicionais sobre feminilidade que, predominantemente, representam mulheres brancas como ideal do ser feminina, mesmo no Brasil, onde a igreja evangélica tem boa representatividade negra. Formado por seis jovens negras cristãs, o Agostinhas – nome que me veio à mente inspirado em Santo Agostinho, o primeiro teólogo famoso, de origem africana – revela mais um dos desafios: precisamos de negros e negras na teologia. O grupo discute sobre racismo, visando combater o problema à luz do evangelho.
Além do Agostinhas, o grupo O que Tem no Brasil, composto por jovens cristãs e cristãos negros, é focado em ativismo antirracista e na divulgação de conhecimento sobre o racismo e a forma de enfrentá-lo. O grupo busca dar visibilidade e ampliar as vozes negras cristãs do Brasil, reconhecendo as coisas boas que Deus tem feito por meio de nós e nossos irmãos, além da questão do combate ao racismo.
Estes projetos querem dar continuidade à discussão do tema entre cristãos, evitando que seja apenas um modismo. As iniciativas têm como objetivo trazer intencionalidade nas ações cristãs sobre a questão, buscando suprir a falta de lideranças, de escritores e de teólogos negros, assim como reconciliar, em Cristo, as chagas e as cisões do racismo.
Em Mateus 5.14, Jesus nos ensina que somos luz do mundo – um mundo devastado pela queda, que leva o orgulho a proporções absurdas e alimenta o ódio racial. Ele diz que nossa luz deve resplandecer diante dos homens para que as nossas obras sejam vistas e o Pai seja glorificado. A partir dos projetos de que participo e do meu testemunho, quero que Deus seja glorificado e que vidas sejam transformadas pelo poder que há em viver para ser o que Deus deseja de nós.
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Por Izabella Vicente – 25 anos, advogada e eleita, recentemente, para vereadora em Macaé, RJ. Acompanhe Agostinhas – cujo conteúdo é para todos, não só para mulheres negras – (@projetoagostinhas) e O que Tem no Brasil (@oquetemnobrasil).
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Texto se encontra na revista Ultimato, edição 385 (setembro-outubro 2020): Racismo – a bíblia, a igreja e uma conversa que nasce da dor. (vide https://www.ultimato.com.br/revista/385)